O papel dos militares brasileiros na tentativa de golpe
Por Pedro Marin. Jornalista e escritor
A turba de extrema-direita que
invadiu o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal e vandalizou os
prédios na Praça dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro, demandava uma
“intervenção militar” no Brasil. Eles haviam montado acampamentos em frente a
quartéis do Exército por todo o País desde novembro, pedindo que os militares
revertessem a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No dia 11 de
novembro de 2022, os comandantes das Forças Armadas soltaram uma nota dando
guarida aos acampamentos – não só física, mas também legal. É importante
sublinhar dois elementos daquele documento: primeiro, os comandantes
declaravam, por meio de uma incoerente interpretação, que os acampamentos
golpistas eram legais, porque os manifestantes eram pacíficos, e que “tanto
eventuais restrições a direitos, por parte de agentes públicos, quanto
eventuais excessos cometidos em manifestações” seriam condenáveis, apesar de
ser crime exigir que os militares dêem um golpe de Estado (Artigo 286). Na
prática, os comandantes das três forças atuavam ali como intérpretes
constitucionais, defendendo a legitimidade democrática dos acampamentos
golpistas e dizendo, antecipadamente, que qualquer medida tomada pelas
instituições contra os acampamentos seria por eles considerada ilegal.
O segundo elemento da nota é a
referência ao conceito de Poder Moderador. Reafirmando seu compromisso com o
povo brasileiro, os comandantes diziam que as Forças Armadas estiveram “sempre
presentes e moderadoras nos mais importantes momentos de nossa história”. O
Poder Moderador foi introduzido na Constituição de 1824, com base nas ideias do
francês Benjamin Constant, que vaticinava que para evitar a “anarquia” que
havia marcado a separação dos Poderes, seria necessário conceder a um deles (no
caso brasileiro, o monarca), um quarto poder, capaz de resolver divergências
institucionais.
No dia 2 de janeiro, quando o
ministro da Defesa de Lula, José Múcio, declarou que considerava os
acampamentos uma “manifestação da democracia”, e que tinha “amigos e parentes”
nestes acampamentos, ele só repetia o que as Forças Armadas vinham dizendo
desde novembro.
O Brasil tem uma longa
história de intervenção militar na política. A república brasileira foi fundada
através de um golpe militar em 1889. De lá até 1989, o Brasil experimentou pelo
menos 15 tentativas de golpes de estado, das quais cinco foram bem-sucedidas:
incluindo uma ditadura militar de 21 anos. Após a queda da ditadura, em 1985,
havia entre os brasileiros a expectativa de que o controle civil fosse
estabelecido sobre os militares e que prevalecesse entre eles o respeito à
democracia. Mas o próprio processo de redemocratização foi controlado pelo
governo militar cessante, por meio de uma “abertura política lenta, gradual e
segura”, nas palavras do então presidente militar Ernesto Geisel, e a pressão
do Exército sobre a Assembleia Constituinte que redigiu a Constituição de 1988
garantiu-lhes o papel de “[garantidores] dos Poderes e defensores da Lei e da
Ordem”.
Durante os dois primeiros
mandatos de Lula (de 2003 a 2011) como presidente, os militares adotaram uma
estratégia de lobby ao lidar com o governo. Desde o impeachment da
ex-presidente brasileira Dilma Rousseff em 2016, no entanto, eles parecem ter
voltado à linha de frente da política. Começaram a surgir, sem punições,
declarações golpistas entre os militares da reserva e da ativa, e até mesmo o
então comandante das Forças Armadas, general Eduardo Villâs Boas, afirmou
“repudiar a impunidade” em um tuíte quando o STF se preparava para decidir
sobre um pedido de habeas corpus impetrado por Lula em 2018. Mais tarde, Villâs
Boas descreveria seu tuíte como um “alerta”. O Exército assumiu cargos
importantes no governo do ex-presidente Michel Temer e ampliou sua participação
política no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, além de ameaçar
continuamente o processo eleitoral em 2022.
No dia 8 de janeiro, enquanto
os prédios governamentais em Brasília eram vandalizados pela multidão
enfurecida, um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) foi discutido e
2.500 militares foram mobilizados, prontos para responder à escalada da
situação. Se tal decreto tivesse sido assinado, as Forças Armadas seriam
responsáveis por controlar a segurança da capital federal do Brasil. Lula, ao
contrário, decretou uma intervenção federal “na área de segurança do Distrito
Federal”, nomeando Ricardo Capelli, secretário-executivo do Ministério da
Justiça, para comandá-la. Posteriormente, o presidente declarou que se tivesse
feito uma GLO, “então estaria acontecendo o golpe que essa gente queria”.
O envolvimento dos militares
nos atos de 8 de janeiro está sendo investigado. Muitos membros da reserva das
Forças Armadas participaram dos atos. Também estão sendo investigados os
motivos pelos quais o Batalhão da Guarda Presidencial, batalhão do Exército
responsável pela segurança do Palácio doPlanalto, não impediu que os
manifestantes invadissem a sede do governo.
“Teve muito gente conivente.
Teve muita gente da PM conivente. Muita gente das Forças Armadas aqui dentro
conivente. Eu estou convencido que a porta do Palácio do Planalto foi aberta
para essa gente entrar porque não tem porta quebrada. Ou seja, alguém facilitou
a entrada deles aqui”, disse Lula.
Após a instauração da
intervenção federal, as forças de segurança, comandadas pelo interventor
Ricardo Capelli, reprimiram e prenderam os manifestantes golpistas. O Exército
mobilizou veículos blindados para bloquear e impedir que a polícia entrasse no
acampamento e prendesse os responsáveis no dia 8 de janeiro. Segundo o
Washington Post, o comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, disse
ao ministro da Justiça, Flávio Dino: “Você não vai prender as pessoas aqui”. A
polícia só foi autorizada a entrar no acampamento no dia seguinte.
Este incidente é apenas uma
manifestação do que as Forças Armadas vêm dizendo desde novembro de 2022: que
se consideram um Poder Moderador e que não permitirão – mesmo após a destruição
de 8 de janeiro – que “agentes públicos” pratiquem qualquer ato que considerem
uma “restrição de direitos” dos golpistas.
O Exército deu guarida aos
golpistas antes e depois de vandalizarem os prédios de Brasília e enquanto
pediam uma intervenção do Exército contra o presidente. Ao mesmo tempo, não foi
capaz de proteger o palácio presidencial de tal multidão. Isso envia uma
mensagem clara sobre quem o Exército estava tentando defender e o que considera
sua verdadeira missão.
No Brasil, torna-se cada vez
mais urgente que as massas, que gritavam em coro “Sem anistia!” para Bolsonaro
durante a posse de Lula em 1º de janeiro de 2023, incluam os militares em sua
demanda.
Artigo
republicado do portal do qual somos parceiros Globetrotter